museu de arte popular

Avatarfechado em Belém mas aberto aqui

AINDA O MUSEU DE ARTE POPULAR: UMA PROPOSTA

Crónica de Raquel Henriques da Silva na L+Arte Janeiro 2009.

O tema desta crónica retoma um tema que já abordei, neste espaço da L+Arte mas também noutros espaços de comunicação. O caso é que, como recentemente disse (Câmara Clara de 14 de Dezembro) parece que o Museu de Arte Popular (MAP) tem sete foles, usando adequado adágio da fala popular…
Depois da ex-ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, ter decidido fechá-lo definitivamente, fazer instalar as suas colecções no Museu Nacional de Etnologia (MNE) e decretar que, no edifício dos anos de 1940, se instalaria o Museu da Língua Portuguesa (misturando-a com o mar, coisa que, confesso, nunca consegui fixar, mesmo em mero título), a certidão de morte estava proclamada. Mas poderá não ser assim: a ministra saiu sem que, juridicamente, o MAP tenha sido extinto. O actual Ministro creio que nunca falou sobre o assunto e, apesar da direcção do Instituto Português e da Conservação (IMC), me garantirem que nenhuma revisão é esperável, resolvi renovar os meus votos em sentido contrário. Por duas ordens de razões: uma do domínio dos princípios, outra porque poderá haver uma interessante solução.
Recapitulando os princípios: o MAP foi uma tardia criação do Estado Novo que, mais do que a ideologia do regime (só então em processo de cristalização improdutiva) manifesta a ideologia e a estética do modernismo na abordagens das heranças populares, valorizando os seus casticismos, inventariados desde os finais do século XIX. O inventário e a valorização dos quotidianos de trabalho e festa não ignorou metodologias mais ou menos rigorosas da etnologia, mas submeteu-as ao gosto pelos objectos únicos, característico dos procedimentos dos museus de belas-artes. Esta hibridez de actuação informa a própria arquitectura do edifício – visando recriar motivos das casas populares do sul de Portugal, mesclando-os com a erudição modernista da fachada principal – bem como a sua importante decoração interior, realizada pelo escol dos pintores e ilustradores dos anos de 1930-40.
No conjunto dos factos apontados radica a impossibilidade de reconversão do edifício a outras funções: ele nasceu como Pavilhão da Arte Popular na Exposição do Mundo Português (1940) e quando foi transformado em Museu assumiu essa marca de origem, fazendo dela o mote da museografia modernista do arquitecto Jorge Segurado. Não podendo ser outra coisa senão o que sempre foi e não podendo ser alterado por questões sérias de salvaguarda patrimonial (é o único edifício sobrevivente do conjunto expositivo de 1940 e possui, in situ, uma rara colecção de pinturas de escala considerável), só a modernização do MAP, sobre a conservação do edifício, é saída aceitável e não a sua apropriação para usos desadequados que invejam a espectacularidade do sítio. Se a decisão for correcta, foi positivo que as colecções tenham sido recolhidas no MNE onde, finalmente, estão a ser estudadas. Deverão retornar depois à casa-mãe, na figura institucional de núcleo museológico do MNE que assegurará a sua programação, eventualmente com a entrada de peças do seu próprio acervo e a assunção plena do passado, através da narrativa expositiva das razões de ser do MAP , no contexto do Estado Novo e das heranças da primeira fase da Etnologia em Portugal.
As razões absolutamente constrangentes para a salvaguarda do MAP não devem ignorar que, ao contrário de vários ministros e de algumas pessoas que, militantemente, pretendem apagar os vestígios da cultura do Estado Novo, há muita gente que tem saudades do Museu, considerando o seu papel afectivo na salvaguarda de memórias e de patrimónios artesanais. Entre os amigos do MAP, quero evocar aqui Catarina Portas, empresária que, nos últimos anos, tem desenvolvido um trabalho meritório em prol da cultura portuguesa, quer nos domínios dos artesanatos domésticos, quer de indústrias extintas que inventaram e implantaram marcas portuguesas. Diversas vezes, a Catarina me abordou, cheia de vontade de fazer alguma coisa, na sua loja de Lisboa, para questionar o desaparecimento do MAP. Mas, há dias, fui eu que avancei, propondo que exploremos a estreita brecha de possibilidades que permanece.
Neste momento, tanto o Ministro como a Secretária de Estado estão empenhados, positivamente, em reflectir sobre os caminhos possíveis para modernizar a gestão dos museus. Creio que pretendem utilizar a maior flexibilidade dos regimes da administração pública, mas também o quadro jurídico que será criado com a Lei sobre o Regime Geral dos Bens do Domínio Público que se encontra em discussão. Não é a altura de me deter sobre o projecto deste último Diploma que está a ser negativamente considerado pelas associações de defesa do património histórico, nomeadamente o ICOMOS. O que o Estado pretende é, à partida, positivo: assumir que não tem nem meios nem capacidade para gerir todo o património público e que, nesse quadro, deve pensar soluções diversas, entre elas a concessão a privados.
Correndo o risco de escandalizar muitos amigos, afirmo que poderá estar aqui a solução para o MAP. Idealmente, considero que ele deve reabrir como núcleo do MNE e por este programado. Mas não podemos esquecer as dificuldades do próprio Museu, extensivas ao IMC que o tutela, nem – é preciso dizê-lo com clareza – o desamor que, em geral, o envolve. Ora há uma empresária, dedicada com sucesso e grande qualidade à promoção da cultura popular portuguesa, que receberia com agrado a concessão do MAP. Não o deseja para enriquecer, antes para salvara e valorizar os sentidos com que ele foi criado.
Pela minha parte, se o Ministro da Cultura quiser entender as potencialidades deste desafio, estou disponível para participar na sua concretização. Para salvar o MAP (o que exige amor e entusiasmo) e para testar, na prática, as desejadas alterações nos modelos de gestão dos museus em Portugal. Recordo o que todos os historiadores sabem: desde 1820, somos bastantes bons a fazer leis e péssimos a implementá-las. Há muito defendo que, pelo menos na Cultura, deveríamos começar por práticas inovadoras em situações concretas.

Ver entrada completa

O MUSEU FUTURO



No Diário de Notícias de sábado passado, António Mega Ferreira resolveu responder à minha última crónica sobre o Museu de Arte Popular. Ele não gosta do edifício nem aprecia o conceito museológico do antigo MAP e por isso clama para que alguém tenha a coragem de o deitar abaixo. Uma provocação destas pede mais alguns argumentos, portanto.

A diferença fundamental entre as nossas visões é que Mega Ferreira olha para o passado e presente do MAP e eu, que também contemplo o que hoje lá (não) está, imagino o que poderia ser o seu futuro. Acredito que um Museu de Arte Popular não deve desaparecer, neste momento, e que, justamente este, nascido em peculiares circunstâncias, devidamente repensado, pode dar origem a explorações instigadoras e originais de várias temáticas.

O Museu possui uma colecção de arte popular portuguesa rara, que deveria ser enriquecida e poderia ser explorada tematicamente: da cerâmica à ourivesaria, passando pelos têxteis, existe trabalho bom e belo neste país. O seu estudo e a sua divulgação são hoje fundamentais para que estas artes não se percam e, pelo contrário, prosperem. Existe um mercado de nichos à sua espera, acredito eu que vou tendo alguma experiência nesta matéria.

Mas o artesanato português vive actualmente um momento crítico. A média etária dos artesãos portugueses é cada vez mais elevada, muitos estão a desaparecer sem passar a sua arte às gerações mais novas. Simultaneamente, assistimos ao eclodir de uma nova geração de designers e de um movimento conhecido como “new crafts”, no estrangeiro e também em Portugal, que se interessa por isto e pede este saber. Acredito que o MAP poderia ser esta plataforma de encontro e diálogo, entre uns e outros, fomentando estágios, transmissão e novas explorações.

O facto de o MAP ser um produto da “Política do Espírito” salazarista, um regime que muito doutrinou e fantasiou sobre a nacionalidade, é justamente, a meu ver, a melhor das provocações para querer descobrir mais sobre a relação de inspiração que, ao longo da história, alguns artistas mantiveram com o seu próprio país. Desde a busca do “pittoresco” que apaixonou a geração de Bordalo e Ramalho até aos nossos dias, essa inspiração continua visível e estimulante no trabalho de artistas como Joana Vasconcelos ou João Pedro Vale. E, neste caso, pode passar também muito adequadamente pelo explorar da obra de todo um conjunto de artistas que nos anos 30 e 40 do séc. XX por aí muito se passearam – falo de Sarah Afonso, Maria Keil, Almada Negreiros, Carlos Botelho, Bernardo Marques, Tom, Piló ou Paulo Ferreira.

No fundo, resume-se a isto: que relação queremos ter com as nossas coisas e o nosso país? Por mim, acho mais excitante poder visitar um museu original que não existe em mais lado nenhum do que ir rever uma colecção de arte moderna, como aquela que alberga o CCB que Mega Ferreira dirige, tão similar a tantas outras pelo mundo fora.


Crónica de Catarina Portas, Público 14 Março 2009
Ver entrada completa

o museu em obras...






Ver entrada completa

O MUSEU ASSASSINADO

O Museu de Arte Popular, em Belém, está fechado desde 2003. Um destes dias, visitei-o. Entrando por uma porta aberta pelo descuido da meia dúzia de homens das obras que por lá se entretiam mais do que trabalhavam, não tive que pagar bilhete, apenas não fazer barulho. O que vi e fotografei, chocou-me: o chão era um areal soltando poeira sobre as paredes pintadas de frescos vários (havia uns plásticos pendurados nalgumas paredes, de facto, mas esqueceram-se de lhes prender o fundo). O resto lá continuava: a belíssima grade de ferro forjado no primeiro andar, a entrada original com o seu mapa do país em alto relevo, nas paredes o que resta das colaborações de artistas como Manuel Lapa, Tom, Eduardo Anahory, Carlos Botelho, Estrela Faria e Paulo Ferreira com as quais o Museu foi inaugurado a 15 de Julho de 1948. E lixo, muito lixo, jornais dos anos 60 e papéis velhos em resmas pelos cantos. Desolação e abandono absolutos.

Isto que eu vi, um edifício histórico abandonado ao deus dará, sem estima nem sensibilidade, foi o que o Estado do meu país fez ao museu onde se guardava a melhor colecção portuguesa de arte popular. Este conteúdo existe, no entanto, está hoje encafuado nas reservas do Museu de Etnologia para que ninguém o possa ver. Tudo isto aconteceu quando, em 2006, a então Ministra da Cultura de triste memória proferiu a lapidar frase “Os museus nascem, vivem e morrem”, assassinando assim o MAP. Quando o novo Ministro da Cultura tomou posse, alguns de nós suspirámos de alívio, sobretudo quando o ouvimos criticar várias das opções da sua antecessora, incluindo o Museu do Mar da Lígua Portuguesa a instalar no MAP. Mas, na sua mais recente entrevista a este jornal, constatámos que afinal tudo voltou à mesma triste sina. Agora, o Museu da Língua já não vai para o Norte do país, é outra vez para ficar em Belém, no edifício do MAP, pois claro.

E o edifício do MAP é apropriado para o museu da Língua? Não, porque é pequeno. Não, porque a maior parte das suas paredes estão cobertas por elementos e pinturas decorativas de vários artistas portugueses. Não, porque as janelas são muitas e enchem o seu espaço de luz. Como sabemos, a ideia do Museu da Língua não é original, trata-se apenas de uma cópia do museu com o mesmo nome que uns governantes portugueses viram em São Paulo e acharam “giro”. Baseado em novas tecnologias, com uma profusão de ecrãs e muita interactividade. Calha aqui? Não, não calha nada. Implica, como qualquer pessoa de bom senso poderá depreender in loco, a destruição quase total deste edifício, o único que restou, embora remodelado, da Exposição do Mundo Português. Acarreta, para mais, a morte de um museu único no seu género, com uma história sobre a qual há muito para reflectir - a construção da imagem de um país por um regime, simultaneamente falsa e verdadeira, e tão fascinante de observar e dissecar hoje ainda.

Não haverá nesta cidade e no seu porto outra hipótesa para albergar o Museu da Língua? Não haverá, neste país, coragem para uma recuperação exemplar e modernamente interpretada do Museu de Arte Popular?


Crónica de Catarina Portas, Público 21 de Fevereiro de 2009
Ver entrada completa

O museu em obras...






Ver entrada completa

CINCO PERGUNTAS POPULARES

Uma crónica de Rubem Carvalho, aquando da polémica em torno do fecho do Museu de Arte Popular.


O projecto anunciado para o velho museu de "arte popular" em Belém levanta - até pelo que não foi esclarecido - diversas interrogações. Aqui se deixam cinco.

Primeiro. Associar num equipamento museológico a língua portuguesa e os descobrimentos faz sentido? E, se faz, a partir de que pressupostos culturais, científicos e ideológicos? Tata-se de uma associação virtuosa ou, pelo contrário, acabará a fazer prevalecer - com incontornável significado cultural e político - a visão de um dos aspectos sobre o outro? Naturalmente que a divulgação da língua portuguesa pelo mundo está intimamente associada aos descobrimentos, mas os descobrimentos não têm de ser abordados para além da questão da língua e a língua não tem de ser abordada para além dos descobrimentos?

Segundo. O tratamento museológico de um fenómeno linguístico tem hoje exigências (simultaneamente permitidas e exigidas pela evolução tecnológica) de que, segundo parece, as experiências virtuais de São Paulo são um estimulante exemplo. O edifício de Belém adequa-se minimamente a estas exigências? Mais importante: a musealização dos descobrimentos tem características, exigências e possibilidades completamente diferentes: é compatível, será enriquecedora e coerente a junção das duas?

Terceiro. O acervo existente (ainda?...) do antigo Museu de Arte Popular é contraditório no seu valor e significado, mas, para além exactamente da globalidade, de que já se falará, contém peças que, em quantidade e qualidade, são hoje únicas. A decisão tomada parece prever a sua disseminação por diversas instituições, algumas que poderão com coerência e rigor acolhê-las (caso do Museu de Etnologia). Mas não se previu, segundo parece, nenhuma solução para manter criticamente coerente um acervo que o é? Dispersá--lo peça a peça, à luz não se sabe bem de que critérios, não é evidentemente a liquidação de um património conceptual?

Quarto. O próprio museu era, como tem sido sublinhado, na sua globalidade - concepção, colecção, edifício - um elemento demonstrativo de uma visão cultural, ideológica e política do povo e da sua arte, própria do salazarismo. Que fica dessa relevante memória?

Quinta e insidiosa pergunta: depois da zona oriental e da Expo de Guterres, o Governo PS resolve acolher-se novamente aos convencionais faustos do poder da zona de Belém?...


Rubem de Carvalho, Diário de Notícias 2007
Ver entrada completa